Dados
do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) apontam que,
somente no primeiro semestre de 2020, foram registradas 39 internações
por aborto entre meninas de 10 a 14 anos no Ceará, ou seja, mais de seis
por mês.
As estatísticas se baseiam nas internações em hospitais
públicos, seja o procedimento espontâneo, por razões médicas ou outras
causas.
O cenário entre as adolescentes de 15 a 19 anos é ainda
mais preocupante. Foram 469 internações por aborto entre janeiro e junho
deste ano. Relações sexuais com meninas acima de 14 anos não são
consideradas estupros de vulnerável, mas, de acordo com a Organização
Mundial de Saúde (OMS), a gestação antes dos 20 anos completos “é uma
condição que eleva a prevalência de complicações para a mãe, para o feto
e para o recém-nascido, além de agravar problemas socioeconômicos já
existentes”.
No Ceará, a maioria dos casos foram registrados em
Fortaleza, onde nove crianças e adolescentes de até 14 anos passaram por
aborto. Outros 21 municípios cearenses também contabilizaram
internações pelo mesmo motivo: Juazeiro do Norte, Sobral, Itapipoca,
Limoeiro do Norte, Icó, Crato, Caucaia, Camocim e Brejo Santo, com dois
casos; além de Tianguá, Quixadá, Morada Nova, Mombaça, Maracanaú, Ipu,
Iguatu, Cascavel, Canindé, Barbalha, Aracati e Aquiraz, com uma
internação por aborto cada.
Entre 2015 e 2019, o acúmulo é ainda
mais expressivo: 602 internações de meninas de até 14 anos por efeito de
abortos foram registradas em hospitais públicos cearenses, uma média
superior a 120 por ano, cerca de dez por mês. Já entre adolescentes de
15 a 19 anos, foram 7.259 casos no mesmo período.
Prejuízos
De
acordo com a psicóloga e professora do Departamento de Psicologia da
Universidade Estadual do Ceará (Uece), Luciana Quixadá, a gravidez
precoce ocasiona diversos prejuízos, tanto físicos quanto psíquicos. “A
gravidez na infância ou na adolescência é um fenômeno que não deveria
acontecer. A criança não tem estrutura física adequada para receber um
outro corpo. Isso também acarreta nela um sentimento de culpabilização,
de vergonha, existe toda uma pressão social em cima dessa menina”,
pontua.
Na maioria dos casos, essa gestação acontece por uma
situação de violência e não por uma relação consensual. “Essa menina foi
vítima de uma violência e a sociedade revitimiza a criança (ou seja, a
expõe à situação de violência novamente), porque existem os
estereótipos, então isso acarreta nela estigmas”, pontua.
Para
Luciana, o aborto tem a ver com o direito da mulher sobre o próprio
corpo, que se estende para as crianças. “Os traumas que a maternidade
precoce vai acarretar ao longo da vida dela, sem uma preparação psíquica
e física para dar conta disso, é um prejuízo muito grande. Vemos mães
com idade já adequada que apresentam depressão pós-parto, que ficam com
série de sequelas quando a gravidez não era desejada. A criança está
numa etapa da vida em que não dá conta de entender isso sozinha. Seguir
com a gravidez é também uma violência”.
Ainda segundo Luciana, as
consequências psicológicas desse procedimento começam ainda no ato do
abuso sexual, que pode gerar medos, ideações suicidas e crises de
ansiedade por exemplo.
Acompanhamento psicológico
Luciana
ressalta a importância do acompanhamento psicológico nesses casos,
tanto na manutenção da gestação quanto na interrupção. “A menina vai
precisar de tratamento, pois esses sentimentos não vão desaparecer, é um
caminho longo para serem resinificados, reelaborados e superados”,
acrescenta.
Além disso, a psicóloga aponta como forma de combate à
essa violência a educação sexual, pois objetiva dar suportes para a
criança entender a situação como uma violência e se defender, e não
antecipar a sexualidade.
Legislação
A criminalização
do aborto “decorre da proteção do direito fundamental à vida, se
estendendo à embrionária”, como explica o defensor público Adriano
Leitinho, titular da 3ª Vara da Infância e Juventude, mas salienta que
esse direito “nunca é absoluto”. “Ele está sujeito a exceções quando em
face de outros direitos fundamentais: como a proteção da vida da criança
vítima do estupro”, pontua.
O aborto é legalizado no Brasil em
apenas duas situações, conforme o artigo 128 do Código Penal: “quando a
vida da gestante está em risco ou quando a gravidez é decorrente de um
estupro e seja da vontade dela por fim à gestação”, frisa Leitinho. No
caso de meninas entre 10 e 13 anos de idade, por exemplo, qualquer
relação sexual é considerada estupro de vulnerável, independentemente da
situação em que ocorreu.
O G1 solicitou ao Tribunal de Justiça do
Ceará (TJCE) o número de decisões judiciais relacionadas a abortos
legais no Ceará, bem como o tempo médio de cada uma delas e que
protocolo é adotado nestes casos. O órgão informou que, “por não existir
filtro que indique especificamente o assunto referente a aborto legal,
não é possível a extração dos dados solicitados”.
À Secretaria da
Saúde do Estado (Sesa), foi solicitada entrevista com representante
sobre a realização desses procedimentos, quais protocolos adotados pela
pasta para os pedidos de aborto legal, se há algum tipo de assistência
após a realização, e se existe algum trabalho de prevenção à violência
sexual no Ceará, no entanto a reportagem não conseguiu contato.
Também
foi solicitado ao Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará
(Cosems) entrevista com algum representante sobre os casos de abortos
de crianças e adolescentes nas cidades do interior, e sobre se e como é
realizado algum trabalho de prevenção à violência sexual em cada
localidade, mas a assessoria de comunicação informou que a conversa não
seria possível até o fechamento desta edição.
G1/CE
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