quarta-feira, 11 de março de 2020

Alma de brasileiro



Não custa repetir. Assim como a madrasta da Branca de Neve, cada povo costuma ver refletido no espelho de seu ethos e de suas tradições, a imagem que mais lhe apraz. Não há brasileiro vivo que não se sensibilize com a saborosa ideia de que é mais malemolente e preguiçoso do que o vizinho. Tão sestroso que fez da história do país uma colcha de retalhos de episódios de conciliação e concórdia, raramente de conflitos e destemperos violentos.
Das certezas definitivas que a nação assumiu, nenhuma dispõe de unanimidade como esta: somos pacíficos, cordiais, hospitaleiros, carnavalescos, jeitosos. Este é o país do deixa-pra-lá, do depois a gente arruma as coisas. Há quem se divirta com essa indulgente autoanálise. Há quem se irrite. Poucos duvidam.

Basta lembrar alguns dos mais caros símbolos nacionais. Macunaíma refestelado numa rede de sisal, a fantasiar deliciosas orgias. Jeca-Tatu, pobrezinho, a rescender a ingenuidade do bom selvagem. Incapaz de matar uma saúva. E o Zé Carioca? Efusivo, tão hospitaleiro quanto a defesa do Atlético Paranaense. Aliás, dessas marcas da personalidade do brasileiro teria resultado nosso estilo no futebol e na música popular.
Dessa mania de definir o que os sociólogos de antanho chamavam de caráter nacional, esponjoso barro de contornos imprecisos de que é feita a alma de cada povo, agrega-se agora a certeza incontestável de que todos os políticos brasileiros são corruptos e que isso deve refletir algo de nosso traço de condescendia com a corrupção. Afinal, é a maioria que insiste em eleger os mesmos políticos que vivem envolvidos em grossas falcatruas.
Ao chegar ao poder, o petismo prometia abalar as velhas instituições políticas e também nossas mofadas estruturas mentais. Repensar o Brasil, era esse o apelo. E parecia que repetiríamos, com novas ideais e novos talentos, a safra que nos deu “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado; “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freire; “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. A sociologia enveredava pela psiquê do brasileiro sorumbático (Paulo Prado), pelo milagre tropical da confraternização pacífica entre as etnias (Freyre), pela nossa democracia do afago e da concórdia (Holanda). Com Sérgio Buarque nascia e era batizado o homem cordial – entidade sociológica de inusitada longevidade.
O próprio Buarque de Holanda encarregou-se de cancelar o mito. Assim como eram mitos outras noções do brasileiro isso-e-aquilo, construídos para escravizá-lo ao estereótipo. Preguiçoso – para justificar a ojeriza ao rigor e à disciplina do trabalho. Incapaz – para que não tenha condições de escolher seus dirigentes. Amistoso – para que ninguém se atreva a cobrar, com violência, o que lhe é devido. Percebeu-se, na polifonia nacional que abriga pobres, ricos, crentes e incréus, desdentados e obesos, rebeldes e acomodados, que é impossível generalizar padrões de comportamento. Só uma coisa é certa, neste país de Estado Patrimonialista, a quase totalidade de nossos políticos é irresponsável, chegada a um regime autoritário para facilitar suas falcatruas, grotesco e facilmente afrouxa o caráter e mergulha na corrupção.

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