Por Joaquim Ferreira dos Santos*
Sabe todo mundo que
escreve, até mesmo os jornalistas, os mais humildes funcionários da
palavra, da necessidade de um texto arrebentar de brilho na abertura e
se encerrar retumbante, com aquilo que os antigos do soneto chamavam de
chave de ouro. O miolo, bem, o miolo dá-se um jeito.
A literatura
mundial está cheia de casos assim. Frases incríveis na página um de
livros que depois, coitados, o escritor vai se cansando, a falta de
imaginação se sobrepondo à sua pequena estatura intelectual, e tudo
escorre ladeira abaixo até ele acordar na última linha para o dó de
peito estilístico, levantador de plateias.
Eu quase escrevo
“ladeira abaicho”, pois este texto pretende se solidarizar, pelo menos
entender e dizer não é 'fássil' pra ninguém, com os estudantes que
fizeram as provas de redação do Enem. Eles 'enxeram' os textos desses
'orríveis' erros 'hortográficos' e sofreram o mesmo drama dos
profissionais da escrita. O que, caraca!, que 1linguissa1, caramba!,
botar entre o brilhareco da frase de abertura e o fecho de ouro?
Teve
estudante que colocou o hino do Palmeiras, outros, a receita de miojo.
Eu aproveito o ensejo, já que estamos chegando ao miolo, para dizer que
lá em casa tem um bigorrilho e que esse bigorrilho fazia mingau, foi ele
quem me ensinou a tirar o cavaco do pau.
Em baixa dramaturgia,
como a que é praticada na novela das nove ou na moderna literatura
brasileira, o problema desse bigorrilho sem nexo é vulgarmente
identificado como barriga. O nome é perfeito. No ser humano designa
aquele estrupício cheio de longas tripas entre o rosto angelical e o
delicioso parque de diversões da sexualidade. Em arte, é o ronco das
tripas do leitor reclamando a grana de volta.
Na novela da Globo,
a barriga é escancarada naquelas cenas em câmera lenta, diálogos
intermináveis, com zero de acontecimentos, no ar apenas para que ela se
estique e chegue aos 180 capítulos regulamentares, e pague a produção.
No
romance, a barriga está nas páginas e mais páginas, geralmente
descritivas da luz ao pôr do sol, feitas apenas para que o livro saia da
definição menos comercial de contos ou ganhe solidez física. Editores
adoram encomendar livros que fiquem de pé no balcão da Travessa. Pedem
“algo em torno de” 400 páginas, pois acham que paralelepípedos aparentam
força intelectual. Na verdade, esses tijolaços sinalizam que é grande o
risco de se estar comprando uma obesidade narrativa.
Ninguém
quer carregar uma barriga, mas, como todos sabemos, não só os que
escrevem, elas aparecem insistentes mesmo malhadas diariamente com o
ferro das abdominais.
Os estudantes, amadores de texto, erraram
apenas em evidenciar, com os hinos clubísticos e as receitas de alta
caloria, que seus textos eram portadores desse mal terrível. Um autor de
hai-kai, por mais genial, não passaria no vestibular. Uma novela de
três linhas do Dalton Trevisan também teria poucas chances. Estamos num
país onde a verborragia é elogiada, a oratória barroca do deputado
baiano é mito intelectual. Na contramão desses delírios, Drummond dizia
“escrever é cortar palavras”.
Na prova do Enem, os estudantes
sabem que os professores gostam de volume. E foi o que eles deram, um
punhado de palavras significando nada. Um levou nota mil. Outro, 500.
O
Brasil adora uma barriga, uma encheção de linguiça. Drummond seria
reprovado. Rubem Braga, sempre aconselhando “palavras curtas”, também
não iria longe. Eu li os textos barrigudos do Enem e notei, além da
necessidade de esticar o assunto, de se esticar também as palavras.
Quanto maiores elas forem, mais a impressão dão de se estar
inconstitucionalissimamente dizendo algum coisa.
A prova de
redação do Enem é a melhor crítica literária da relação do país com a
sua maneira de ler, escrever e reconhecer mérito.
Os estudantes
perceberam que a verborragia insaciável e sem sentido (“sou deputado
baiano, eu quero é falar”, dizia a marchinha) agrada a plateia. Mandaram
brasa, com o repertório que tinham para preencher a falta de assunto.
Sabiam que ninguém presta atenção (como parece ter sido o caso dos
professores encarregados de pontuar o que não estavam lendo). Sem citar
nomes, passavam adiante os ensinamentos dos grandes mestres nacionais da
língua, gênios como o José Luiz Datena, o Sílvio Santos, o Faustão, o
Galvão Bueno, metralhadoras verbais que passam horas no ar dizendo... o
quê mesmo?
Fala-se pelos cotovelos, há gordura por todos os
cantos dos textos — é o normal da civilização brasileira —, e os
professores do Enem não precisaram nem ler. Diante da evidência
caudalosa de que estavam diante de imensas barrigas literárias, deram
dez, nota dez. Este é o país em que o presidente Juscelino Kubitschek,
para encher de pompa os discursos, pedia ao redator: “Espalhe umas
borboletas entre os parágrafos”. Estudantes, anarquistas graças a Deus,
espalharam miojo e banha de porco.
*Joaquim Ferreira dos Santos é
colunista do GLOBO, onde publica sua crônica às segundas e diariamente a
coluna Gente Boa, no Segundo Caderno